Quando a lógica se evapora

* Marjorie Estiano e Caco Ciocler em cena de "Segundo Ataque" (crédito: André Gardenberg).

Estou aqui enganchada com a leitura de Kafka à beira-mar, romance de 2005 do escritor japonês Haruki Murakami (1949), lançado no Brasil pela Alfaguara. Ainda não decifrei quem é “o menino chamado Corvo” do prólogo, que aparece também em outras passagens. O jovem narrador, Kafka Tamura, de 15 anos (mas aparência de 17), trava amizade com a garota de cabelo cor castanho intenso, quase ruivo, orelhas pontiagudas e seios fartos. Aparece o senhor Nakata e um gato que fala. E o que dizer do Oshima da biblioteca? Mas o que tem me interessado mesmo é o misterioso caso das crianças no Morro da Tigela, em 1944, que aparece sob a forma de relatório de investigação do Serviço de Inteligência Militar do exército estadunidense em capítulos intercalados ao do narrador. Há um quê de mistério e estranhamento na  hipnotizante narrativa, e a vontade é devorar mais uma dezena de páginas e mais outra, e mais outra, para saciar a curiosidade. Tão logo termine a leitura, emito minha humilde opinião. Por ora, registro meu prazer em desbravá-lo.

Murakami cativou também a cineasta e diretora teatral Monique Gardenberg, que decidiu levar aos palcos, em parceria com Michele Malaton, uma adaptação de cinco contos de The Elephant Vanishes (1993), ainda sem versão em português. No teatro, Monique dirigiu a elogiada montagem Os Sete Afluentes do Rio Ota (2002), com texto do canadense Robert Lepage, e também Baque (2004), Um Dia, no Verão (2007) e Inverno da Luz Vermelha (2010).  No cinema, realizou os longas-metragens Jenipapo (1995), Benjamim (2004) e Ó, Paí, ó (2007).

Mais cinema, menos teatro

Como todo espetáculo composto por narrativas independentes, O Desaparecimento do Elefante não é homogêneo e tem histórias mais bem resolvidas que outras – seja em relação à lapidação cênica, seja em relação ao texto. Mesmo assim, o conjunto resulta numa peça bastante interessante, divertida em vários momentos, instigante em outros, e consegue apresentar com fidelidade o universo surreal de Murakami, permeado por tipos solitários e esquisitos. O caráter simbólico do sono (mais que o do sonho) é recorrente nas obras do japonês, assim como as referências pop e a intertextualidade. Tudo se revela tão real quanto nonsense; pode não fazer sentido para a razão, mas talvez se explique emocionalmente.

Em certas passagens da peça, porém, Monique pareceu ter sido mais cineasta que encenadora – em vez de buscar soluções cênicas no próprio palco, recorreu a projeções como saídas mais fáceis (foi a impressão que me deu). Não me refiro à proposta estética que contempla elementos cinematográficos ou uma diluição das fronteiras entre as linguagens nem ao uso de efeitos no cenário criado por Daniela Thomas e Camila Schmidt. Mas ao protagonismo do cinema em relação ao teatro numa peça (e olha que não sou nada tradicionalista). No episódio que dá nome ao espetáculo, o último na sequência, por exemplo, achei que faltou lapidação teatral e que a cena foi concebida em razão das imagens pensadas para “ilustrá-la”. Rafael Primot, que é um bom e carismático ator, poderia dar conta, no próprio palco, das fantasias de seu personagem – um rapaz fascinado pelo desaparecimento misterioso de um elefante e de seu cuidador.

*“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira", disse Tolstói. Os personagens de Maria Luísa Mendonça, André Frateschi e Rodrigo Costa que o digam (crédito: André Garderberg).

Sensação de desencaixe

Gostei muito do texto da terceira narrativa, Sono, em que uma mulher insone (Maria Luísa Mendonça) passa dias e noites a devorar Anna Karenina, de Liev Tolstói, sem que seu marido dentista e seu filho adolescente (André Frateschi e Rodrigo Costa, respectivamente) – ah, tão felizes os dois… – se deem conta disso. A leitura consome essa mulher de tal forma que ela já não consegue discernir o que ocorre na realidade e o que pertence à sua imaginação. O texto é ótimo, os atores estão bem, os efeitos de cenário são bacanas, mas, de novo, há excesso de projeções – desnecessárias, por sinal, já que a luz e o figurino indicam a mudança de atmosfera e marcam a transição do estado onírico para o cotidiano e vice-versa.

Meu episódio preferido é O Comunicado do Canguru, com um texto excelente e a atuação primorosa de Kiko Mascarenhas, como o responsável por responder as reclamações dos consumidores de uma loja. Certo dia, ele se apaixona por um cliente por conta de sua escrita e cria fantasias eróticas inspirado pelas vírgulas e pausas da carta do rapaz. Rimos tanto quanto nos emocionamos com a interpretação cativante de Kiko.

Muito boa também é a primeira história, O Pássaro de Cordas, que retrata essa sensação de desencaixe tão presente nos personagens de Murakami – eles estão sempre deslocados, inadequados, carregam um mistério insolúvel diante da aparente praticidade cotidiana. Um homem desempregado (Caco Ciocler, ótimo) entretém-se com afazeres domésticos. Recebe o estranho telefonema de uma mulher (Marjorie Estiano) e, em seguida, o de sua esposa temperamental (Maria Luísa Mendonça). Desta recebe a incumbência de procurar o gato de estimação, desaparecido há dias. O homem vai atrás do bichano e conhece uma falante garota (Fernanda de Freitas), com quem trava um diálogo surreal. Trata-se de um flagrante de um dia banal na vida desse homem; tão banal que se torna pitoresco. Episódio redondinho este, com soluções cênicas inteligentes, ritmo e interpretações precisas.

E, por fim, mas não menos importante, Segundo Ataque, em que um maloqueiro e sua mulher japonesa (que parece uma figura saída de um anime, com seus cabelos cor de rosa, meias coloridas e sapatos plataforma), mortos de fome, decidem assaltar uma lanchonete fast food em plena madrugada. Caco Ciocler e Marjorie Estiano interpretam muito bem seus personagens, e a cena do ataque à lanchonete é hilariante. O lado pop e a ironia de Murakami aparecem de modo mais explícito. Gostei bastante da direção de movimento nesse episódio.

Se apontei alguns incômodos que a montagem me trouxe, não é para desmerecê-la, pelo contrário. É que realmente acredito que recursos teatrais podem dar conta, sim, de histórias fantásticas com um quê de filosofia, como as do best-seller japonês. E que elementos cinematográficos não devem suplantar o fazer cênico no palco, ainda mais quando o elenco tem atores competentes. Vá assistir ao espetáculo e não deixe de partilhar comigo suas impressões. E, se estiver preso ou presa à leitura de um livro de Murakami como me encontro eu, avise. Pode ser que tenhamos caído em algum universo paralelo, envolto numa aura de mistério, mas inexplicavelmente com cara de rotina banal e sem graça. Tal e qual a mulher de Sono.

* Caco Ciocler e Fernanda de Freitas no episódio "O Pássaro de Cordas" (crédito: André Gardenberg).

Até 5/4, sex. 21h, sáb. 20h e dom. 18h. Sesc Pinheiros: R. Paes Leme, 195, Metrô Faria Lima, tel. 3095-9400. Gênero: drama. Duração: 135 min. Classificação: 12 anos. Ingressos: R$ 8 (trabalhador no comércio ou de serviço matriculado) a R$ 32. Crédito: D/M/V. Débito: M/R/V. Onde comprar: no Sesc Pinheiros (ter. a sex. 10h/21h30; sáb. 10h/21h e dom. e fer. 10h/18h30) e nas demais unidades do Sesc. (E) R$ 6.