Quase um ritual

Antonio Salvador e Eduardo Okamoto em Recusa: sobreviventes de um massacre indígena que inspirou trabalho de três anos (Foto: Alê Catan Divulgação)

Fui assistir à peça Recusa na sexta-feira em que um fortíssimo temporal havia feito um estrago enorme na cidade durante a tarde. Às 8 da noite, São Paulo ainda enfrentava inúmeros pontos de alagamento, bairros sem energia elétrica, árvores caídas, problemas nas linhas de metrô e trem, panes em vários semáforos, além de um trânsito ainda pior que o habitual. Naquele dia, a natureza pareceu extremamente revoltada – como se chorasse os séculos de agressão doída, doída.

Ali, na pequena arena do Itaú Cultural, os sons da cidade se faziam notar e sugeriam um curioso contraste com o ambiente mítico e sugestivo elaborado por Márcio Medina e por Davi de Brito, responsáveis respectivamente pelo cenário e pela iluminação da peça. Nos mantínhamos em silêncio, à espera. Da Avenida Paulista, vinham buzinas, sirenes e freadas; pelas paredes de vidro, enxergávamos as luzes coloridas dos edifícios e antenas vizinhos. Quando os personagens vividos por Antonio Salvador e Eduardo Okamoto entraram em cena, trazendo consigo a musicalidade indígena e um ritmo peculiar, os ruídos urbanos foram ficando cada vez mais difusos. Estávamos com eles na mata repleta de sonoridades, formas e narrativas ancestrais. Estávamos com eles numa aldeia Piripkura no tempo fabuloso dos inícios.

Tudo começou quando parecia já terminado: em agosto de 2007, dois índios de uma tribo que muitos consideravam extinta foram localizados no noroeste do Mato Grosso, quase fronteira com Rondônia. A equipe de sertanistas só os encontrou por causa das gargalhadas que ecoavam na mata – eles riam com as histórias que contavam um ao outro. Identificados como Piripkura, eram sobreviventes de um massacre possivelmente perpetrado a mando de fazendeiros (como, infelizmente, tem sido comum em vários pontos do país) e vagavam pela região, em fuga constante. Evitavam o contato com os brancos. A notícia instigou a Cia. Teatro Balagan, que dedicou mais de três anos ao projeto de trabalhar artisticamente a saga daqueles indígenas e as outras histórias que poderiam ser derivadas dela.  Integrantes da trupe estiveram, inclusive, na aldeia Gapgir, em Rondônia, convivendo com os índios Paiter Suruí durante um período.

Pacto com a plateia

O resultado é um espetáculo pungente e humano, quase ritualístico – mas sem concessões.  A rica dramaturgia de Luís Alberto de Abreu combina fatos concretos e mitos, realidade nua e crua e fantasia, sobriedade e ironia. E Maria Thaís dirige com maestria o mosaico de situações construídas pelos atores-narradores, que vivem os diversos personagens em constante desdobramento. Trata-se de uma peça que cobre séculos de trajetória, mas se revela também atemporal. O cenário mutável se desenha conforme a história – contada/cantada enquanto vivida e experimentada no corpo e na voz de Salvador e Okamoto. Digo que o espetáculo não faz concessões porque estabelece um pacto com os sentidos e a imaginação do espectador; e, se você não o aceita, se colocará sempre à margem do que vê, passará indiferente pela experiência sonora e cênica proposta pela Cia. Teatro Balagan.

A história dos dois Piripkura ou da dupla Pud e Pudleré (e demais personagens) é história nossa, como brasileiros. Já tive oportunidade de, em 2012, estar alguns dias numa aldeia indígena – Marãiwatsédé, terra xavante em Mato Grosso, atualmente em processo de desintrusão de não-índios depois de longa batalha judicial. Recusa me fez reviver a experiência de alteridade vivida com os Xavante. Embora os troncos linguísticos a que pertençam Xavante e Piripkura sejam diferentes – os primeiros são Jê; os segundos, Tupi – a sintaxe do português falado pelos atores me recordava a do cacique Damião, do ‘pai’ Francisco, de Domingos, entre outros amigos indígenas, quando se expressavam em nosso idioma. Em determinado momento, esqueci que estava num teatro localizado em plena Avenida Paulista. Me vi na aldeia. Me vi na mata, seguindo a pista dos Piripkura, tentando acompanhar a mítica canção ancestral, cada vez mais silenciada pela ideia equivocada de “progresso” e “desenvolvimento” que tem dizimado nossos índios.

Os atores Antonio Salvador e Eduardo Okamoto conquistaram o prêmio de interpretação da APCA, Maria Thaís recebeu o Shell de direção e Márcio Medina, o Shell de cenário. A peça estreou em 2012 na SP Escola de Teatro, na Praça Roosevelt, centro da cidade. Fez rápida temporada no início de março deste ano no Itaú Cultural e agora reestreia no Centro Internacional de Teatro – ECUM (o Cit-ECUM), espaço inaugurado em fevereiro de 2013. Foi estranho voltar à atmosfera urbana depois de Recusa. Enquanto observava os rastros deixados pelo temporal na cidade, pensava no rastro que a peça deixara em mim, ainda admirada com a luta dos dois Piripkura para manter vivos os segredos de todo um povo já morto. Sim, eles se recusavam a desaparecer.

O texto de Recusa combina fatos reais com fantasia, mas sem fazer concessões (Foto: Alê Catan Divulgação)

RECUSA. De 15/03 a 14/04, sex. e sáb. 21h, dom. 20h. Centro Internacional de Teatro Ecum/ Sala1: R. da Consolação 1623, metrô Paulista, tel. 3255-5922. Gênero: drama. Duração: 80 min. Classificação: 12 anos. Ingressos: R$ 40. Crédito: Diners, Mastercard e Visa. Débito: Maestro, Redeshop e Visa Electron. Onde comprar: na bilheteria (abre duas horas antes) ou, com taxa, pelo telefone 4003-2330 e pelo site Ingresso.com.