Resistir é preciso: tortura nunca mais

Uma sala de interrogatórios, provavelmente instalada em algum imóvel de fachada discreta, resguardado por servidores do regime. Ali, a luz exterior mal entra. Ecoam ruídos diversos – do ranger de portas e passos duros a gritos e gemidos – que vêm dos cômodos e corredores vizinhos. Naquele ambiente sufocante e lúgubre, o torturado troca nacos de vida pela manutenção de sua dignidade; ele se nega a dedurar os companheiros. O torturador, curiosamente comovido pela integridade moral do rapaz alquebrado e cruelmente machucado, enfrenta uma crise de consciência: carrasco, ele? Engana-se: seu instrumento de persuasão é a palavra, não os choques nem os métodos violentos e desatinados dos “homens elétricos”.

Histórias assim ainda permanecem escondidas em porões que, mesmo depois do fim oficial dos regimes ditatoriais latino-americanos, são mantidos lacrados e interditados. Quantos Pedros morreram em tais porões – no Brasil, na Argentina, no Chile, no Uruguai… Quantos capitães saíram ilesos, protegidos por leis de anistia e outros arranjos feitos às pressas. Alguns desses, contudo, sucumbiram – à crise de consciência ou à justiça. Talvez a ambas.

A peça Pedro e o Capitão, com os atores Kiko Vianello (esq.) e Fernando Bello, dirigida por Marcos Loureiro, lida com feridas da recente história latino-americana. (Foto: Alexandre Catan)

A peça Pedro e o Capitão, com os atores Kiko Vianello (esq.) e Fernando Bello, dirigida por Marcos Loureiro, lida com feridas da recente história latino-americana. (Foto: Alexandre Catan)

 

A ótima peça Pedro e o Capitão, com Fernando Bello e Kiko Vianello e direção de Marcos Loureiro, lida com essas feridas da recente história latino-americana. Expõe os aspectos morais da tortura, prática infelizmente corriqueira nos regimes autoritários e ainda tão presente no Brasil democrático, funcionando ainda como instrumento de repressão. O texto, escrito em 1979 pelo escritor e poeta uruguaio Mario Benedetti (1920-2009), poderia ter como contexto qualquer uma das ditaduras do continente. Torturador e torturado travam um embate ético. A cada ato, assistimos à deterioração física de Pedro (Fernando) em contraponto à degradação moral do Capitão (Kiko). O Capitão quer nomes, exige que o preso entregue seus companheiros; justifica a crueldade como parte de seu trabalho, um meio para alcançar um fim maior: a manutenção da ordem, o cumprimento das regras. Pedro prefere a morte à delação; não abandona sua coerência em momento algum e agarra-se à lucidez até o último suspiro.

Os intérpretes se saem muito bem. Fernando Bello consegue transmitir todo o esgotamento físico e emocional do torturado – na respiração, no olhar, na postura, na voz. Kiko Vianello, por sua vez, vai aos poucos tirando o manto protetor de seu personagem, revelando-o mais e mais vulnerável e emocionalmente débil. Não se trata de uma luta entre desiguais; ambos, na condição de seres humanos, em essência, encontram-se em pé de igualdade; é o Estado, por meio de um aparato arbitrário e repressor, que delimita diferenças cruciais entre aqueles dois indivíduos. Confere a um o lugar de inimigo; ao outro, de parceiro. Determina que um precisa ser punido; o outro, punir. Um vira vítima; o outro, algoz. No fundo, para o sistema, o torturador que não cumpre direito sua função se torna tão descartável quanto o torturado. Por isso, o Capitão, quando se dá conta disso, busca a todo custo legitimar sua função.

Fernando Bello como Pedro, o preso político: ele resiste, com dignidade e bravura, às sessões de tortura e se mantém fiel às escolhas que o levaram a ser considerado inimigo do regime. (Foto: Alexandre Catan)

Fernando Bello como Pedro, o preso político: ele resiste, com dignidade e bravura, às sessões de tortura e se mantém fiel às escolhas que o levaram a ser considerado inimigo do regime. (Foto: Alexandre Catan)

Mas os dois homens obviamente têm livre-arbítrio, não são meros joguetes na mão do Estado. Ambos fizeram escolhas muito claras e muito conscientes (corajosas ou covardes, dependendo do ponto de vista, mas conscientes). O mérito do texto, e das opções cênicas de Marcos Loureiro, é lidar com a questão de modo objetivo e desapaixonado. Evita-se o drama, o melodrama, a apelação. A tortura física não é encenada. Mas conseguimos imaginá-la – e isso incomoda, incomoda muito. A que ponto chegamos? Como os homens podem ser tão bestiais? Os dilemas de torturador e de torturado, em última instância, tornam-se os nossos dilemas. A trilha de Dr. Morris contribui e muito para criar atmosferas, preencher o ambiente de agonia e expectativa (ainda que o desfecho seja evidente). Bastante precisa a luz de Fran Barros. E muito bonito o cenário de Omar Salomão, criado a partir das pilhas de jornais – narrativas que foram recontadas de tantos jeitos, verdades e mentiras que constituem nossa história recente, pequenos relatos íntimos que jamais atravessarão os porões.

Saí do CCBB com uma sensação de vazio, um tanto inconformada pelo vácuo de informações sobre o período de 1964 a 1985. Ainda falamos muito pouco sobre as atrocidades cometidas durante a ditadura militar, pouco diante de tudo o que aconteceu. Felizmente cortam o silêncio infame depoimentos e testemunhos corajosos dos Pedros que sobreviveram àqueles porões. Cortam o silêncio infame relatos contundentes, como os obtidos pelo jornalista Luiz Carlos Azenha e equipe, exibidos na série As Crianças e A Tortura, da TV Record, vencedora do Prêmio Esso de Jornalismo deste ano. Cortam o silêncio infame livros e filmes, como o documentário Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski, e o longa de ficção Hoje, de Tata Amaral, que ousam remexer em lembranças doloridas e ossadas (metafóricas) não-identificadas. Por não termos ainda punido os responsáveis que ainda estão vivos, por falarmos pouco a respeito, permitimos que a tortura em seus mais diversos graus ainda seja um instrumento presente em nossa sociedade.

Temos o direito de saber quem esteve naqueles porões. Eu quero saber. Quando nasci, o general Ernesto Geisel era o presidente do Brasil. O país vinha dos anos de chumbo da ditadura militar, que, amparada pelo Ato Institucional nº 5 e outros decretos, cometia as maiores arbitrariedades e atrocidades contra seus “inimigos”. Geisel extinguiu o AI-5 em 1978 e deu início à abertura política. Mas não me lembro de Geisel, que ficou no poder até 1979. Recordo, sim, de seu sucessor, o general João Figueiredo, cujas imagens apareciam todo o tempo na TV. Era um militar, andava de uniforme verde-oliva e estava sempre cercado por outros homens fardados. Mas, eu criança, não achava isso nem bom nem ruim, tampouco entendia o que significava ser militar e fardado naquela época.

Kiko Vianello como o interrogador, que não assume ser torturador: um homem, no fundo, vulnerável e covarde. (Foto: Alexandre Catan)

Kiko Vianello como o interrogador, que não assume ser torturador: um homem, no fundo, vulnerável e covarde. (Foto: Alexandre Catan).

A lei de anistia, de 1979, foi usada como escudo para “colocar uma pedra sobre esse assunto”. Coronéis, alias capitães, apenas lavaram suas mãos e deixaram os porões sem pestanejar. Eu quero saber o que aconteceu; quero saber quem foram esses coronéis. Tenho, como brasileira, esse direito. Tenho o direito de clamar por justiça. Como assim, ‘bola pra frente’ sem saber a verdade? Sou de uma geração que nasceu sob a fase mais branda da ditadura e, na infância, acompanhou o processo de abertura política. Não experimentei a repressão mais dura, como a geração anterior, nem conheci apenas o Brasil da liberdade de expressão, como a turma mais nova, que já nasce falando o que bem entende e só conhece o regime dito democrático. Acompanhei, menina atenta e interessada, a transição política. Meus livros de história, na adolescência, ainda mencionavam a “revolução de 1964”, e a Educação Moral e Cívica fazia parte do currículo. O Brasil mudava, o mundo dissolvia-se, e os professores, atônitos, nem sabiam mais o que dizer. Em 1989, o cientista político estadunidense Francis Fukuyama apresentou sua tese sobre o fim da História. Pô, e eu nem tinha saído do colégio ainda…

O espetáculo Pedro e o Capitão gera desconforto, incomoda – o que é bastante positivo. Ainda bem. Porque, infelizmente, os direitos humanos ainda são continuamente desrespeitados em nosso país; basta recordar o caso do pedreiro Amarildo de Souza, morador da Rocinha, morto depois de ser torturado por policiais (leia reportagem de Elenilce Bottari em O Globo). Basta recordar igualmente a atuação da Polícia Militar durante as manifestações que tomaram as ruas brasileiras este ano e medidas posteriores. Basta acompanhar certas discussões nas redes sociais em que autodeclarados “defensores da ordem”, gente como a gente, bradam por uma repressão linha-dura aos ditos “baderneiros”, gente como a gente.

Quando um indivíduo se transforma em torturador de outro indivíduo? E por quê? Está em cartaz, também no CCBB, a exposição Resistir é Preciso, com curadoria de Fábio Magalhães (até 6/1/2014). Idealizada pelo Instituto Wladimir Herzog, a mostra narra história da resistência à ditadura militar no Brasil. O momento é oportuno, aliás. Nós precisamos saber, temos esse direito. Sim, resistir é preciso. Tortura nunca mais.

Até 13/12, qua. a sex. 20h. Gênero: drama. Duração: 75 min. Classificação: 16 anos. Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB: Rua Álvares Penteado, 112, Metrô São Bento, tel. 3113-3651 / 3113-3652. Ingresso: R$ 10. Crédito: M/V. Débito: M/V. Onde comprar: no CCBB (seg. e qua. a dom. 10h/21h; fecha às terças). Estacionamento: R$ 15 (Edifício Zarvos; van faz o traslado gratuito no trajeto de/para o estacionamento).