Literatura e teatro em diálogo

Peço desculpas ao leitor desse blog pela ausência de resenhas críticas nas últimas semanas. Não faltaram espetáculos instigantes sobre os quais poderia ter escrito – destaco especialmente Medeia Vozes, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, 66 Minutos em Damasco, do libanês Lucien Bourjeily, e A Vida Crônica, de Eugenio Barba e seu Odin Teatret, que ainda ganharão alguns comentários meus, mesmo já tendo saído de cartaz. Contudo, resolvi me dar um período de pausa nas elucubrações jornalísticas para me dedicar a outras tarefas, mais urgentes naquele momento. A vida, esse fluxo contínuo de eventos, emoções e deslocamentos de tantas ordens que não poupa a pessoa – talvez resguarde em alguns momentos a persona –, sempre tem prioridade, não é mesmo? (Me recordo aqui da bela peça Vida, da curitibana Companhia Brasileira de Teatro, que trata justamente disso.)

O impulso que faltava para que eu retomasse o Jogo de Cena veio no domingo. Tinha planejado assistir aos três espetáculos do projeto Puzzle, concebido e criado pelo diretor e dramaturgo Felipe Hirsch para a Feira do Livro de Frankfurt deste ano, e só depois publicar uma resenha a respeito. Mas Puzzle C – o último segmento do projeto, o primeiro que vi – continua reverberante em mim. Sinto seus ecos lá e cá: retomei minhas estripulias literárias, comprei dois livros que andava namorando e cuja aquisição postergava (um do chileno Roberto Bolaño, outro da mexicana Valeria Luiselli), comecei a namorar outros dois livros, um do paulistano Juliano Garcia Pessanha e outro do gaúcho Amilcar Bettega Barbosa, presentes no segmento C, e volta e meia me pego pensando em imagens que o espetáculo me despertou. Por isso, decidi partilhar algumas breves impressões antes de ver as outras duas peças.

>> Brasil, esse “país estranho”

Em entrevistas, Felipe Hirsch afirmou que pretendia montar uma apresentação literária sobre o Brasil – esse “país estranho”, homenageado em Frankfurt – tendo como base textos de escritores nacionais contemporâneos. Não se tratava de construir uma dramaturgia inspirada neles, ou seja, uma colagem de fragmentos que resultasse “teatral”, mas sim de trabalhá-los cenicamente. Improvisações e apropriações foram acolhidas ao longo do processo. Contudo, ao menos em Puzzle C, as narrativas literárias aparecem vigorosas, inteiras – mesmo que nem sempre na íntegra – e respeitadas em suas especificidades. Não há uma história única; mas histórias que, em conjunto, oferecem uma miríade de sentidos e percepções que terminam por convergir em algumas questões–síntese.

Os temas que emergem no terceiro segmento do projeto podem, a princípio, parecer subjetivos demais. Particulares, íntimos. Mas revelam, de modo agudo embora sutil, a opressão anti-ética e amoral perpetrada por uma sociedade que se fascina facilmente com vernizes, lantejoulas, aparências, celebridades instantâneas, reis do camarote e bons vivants legitimados pelo dinheiro. Nadamos atualmente (desde sempre?) em águas barrentas e superficiais; preferimos o simulacro à realidade. Aderimos a um maniqueísmo infantil: “se você não é X, é Y e ponto”, como se não existissem outras opções políticas, afetivas, econômicas… A mesma mão que afaga também esbofeteia; os critérios nem sempre ficam claros, afinal, onde há fresta e fissura, há vantagens, há propina. Tudo soa espetáculo – até violência ganhou contornos espetaculares e hoje pauta o cotidiano brasileiro; violência de todas as ordens, oficial e clandestina, de mercado ou de Estado, microscópica ou generalizada.

"Puzzle", concebido e dirigido por Felipe Hirsch, não cai na literalidade e evita qualquer transcrição ou tradução cênica das narrativas trabalhadas. Apenas espalha as peças do quebra-cabeça. (Foto: Divulgação)

“Puzzle”, concebido e dirigido por Felipe Hirsch, não cai na literalidade e evita qualquer transcrição ou tradução cênica das narrativas trabalhadas. Apenas espalha as peças do quebra-cabeça. (Foto: Divulgação)

Escrevo isso inspirada pelos textos de Puzzle C, que são quatro: “No Teatro”, de Veronica Stigger; trechos de “Vista do Rio”, de Rodrigo Lacerda; fragmentos de “Heterotanatografia, Equação Natal – Presença Roubada e Micro-História II”, de Juliano Garcia Pessanha, e “O Puzzle – Fragmento, Suite et Fin”, de Amilcar Bettega Barbosa. Aparentemente, não têm nada a ver; mas, como ressaltei antes, oferecem visões particulares que revelam muito da coletividade. Em comum, há um componente grande de exasperação (com roupagens diferentes, é claro). Hirsch e os atores optaram por ressaltar o lirismo dessas narrativas, por meio de uma abordagem mais poética e empática, menos agressiva ou árida.

Assim, é muito emblemático o jogo que se estabelece no primeiro ato, em que a espectadora que odeia teatro, por conta da proximidade excessiva com os atores – no cinema, ao menos, há mediação, diz ela –, se deixa levar ao palco. E ali é (literal e simbolicamente) decapitada pelo ator mais lindo. Entrar em cena, lato sensu, no teatro ou na vida, implica a aceitação da perda. Nos sujeitamos a essa solidão, a esse desamparo; pensando na sociedade brasileira, parece impossível escapar ao discurso maniqueísta, superficial e malemolente que ‘guilhotina’ nossos anseios de transformação e nos isola em ilhas ideológicas [essa é uma leitura muito particular minha]. E aí vem a história do beija-flor no liquidificador, um sadismo furta-cor que começou com um engano – a flores de plástico, a água com açúcar, a sombra (“seu mundo inteiro o traiu”) – e terminou com os olhos verdes acesos do “torturador”, uma espécie de gozo, sensação do dever cumprido. Somos cruéis, no fundo; domamos essas feras, a selvageria, o lado obscuro de nosso instinto de sobrevivência dia após dia. Elucubrando um pouco: quantos não são os beija-flores mortos cotidianamente por meros exercícios de poder e ganância? Jovens assassinados na periferia, indígenas em confronto com grandes latifundiários, infâncias desdenhadas, trabalhadores massacrados por condições indignas de existência…

Os dois últimos textos ecoaram fortes em mim; são os mais transcendentes. Se Stigger e Lacerda nos catapultam para o cimento, fazendo explodir nossas caras risonhas e nádegas pachorrentas, Pessanha e Bettega nos tiram do bueiro, já sujos e rotos, para uma nova chance. Pensei comigo: por que fiquei tanto tempo em completo desconhecimento da obra de Pessanha? Ele nos apresenta um indivíduo alienado de si por obrigações de uma vida social infame, embora convencional e ‘ordenada’, massacrado pela barbárie do lugar-comum e dos extintores anti-incêndio (íntimo). Há, nas narrativas do escritor paulistano, uma nostalgia pelo outro, um outro que o sujeito quase chegou a ser não fossem as tentativas de sabotagem, próprias ou alheias, e a tralha cotidiana de exigências. E no belíssimo conto de Bettega persiste uma utopia tênue, que perpassa cidadãos comuns, numa cidade de fios e calçadas e avenidas e um rio (o Guaíba), e se concretiza num recontar de histórias, numa reorganização de fragmentos simbolizados em objetos banais, numa tentativa de montar o quebra-cabeça do ser-estar no mundo. E, no fim, há uma pequena epifania – tal e qual aquela bela crônica do Caio Fernando Abreu (“Era isso – aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania.”).

>> Liberdade para imaginar

Pois bem: finalmente chego aos comentários “teatrais”. O projeto Puzzle poderia supor uma primazia do texto sobre a encenação. Afinal, como a ideia era montar uma “apresentação literária”, respeitando a autoria e a essência das narrativas, uma escolha possível teria sido teatralizar tais obras, condicionando as cenas às descrições e às ações presentes nos contos. Tal opção talvez resultasse mais fácil para todo mundo: o espectador provavelmente se sentiria mais confortável, o trabalho do diretor seria mais protocolar. Mas Hirsch não fez isso. Como falei antes, os textos estão inteiros, embora nem sempre na íntegra. Hirsch propôs, então, um diálogo, não a submissão de um elemento ao outro (texto à encenação, encenação ao texto). Deixa evidentes suas decisões – o posicionamento dos atores, o modo com que os textos são ditos ou lidos, o foco da cena, a presença ou ausência da luz, a entrada da trilha, os recursos usados etc.

Por isso, ficamos com a sensação de que não somos meros ouvintes ou espectadores daquelas narrativas; nós as vivemos conforme elas se desenrolam. Fazemos parte daquela construção artística; tateamos um caminho desconhecido, escorregamos e nos levantamos de novo. Hirsch poderia ter sucumbido à tentação de oferecer imagens fechadas ao público. Poderia ter elegido situações, atmosferas, personagens segundo sua leitura de cada conto. Mas não. Preservou um dos aspectos mais fascinantes da literatura, que é o de transformar o leitor em coautor, deixando-nos livres para imaginar o que bem entendêssemos a partir de cada sugestão dada. Puzzle C não cai na literalidade e evita qualquer transcrição ou tradução cênica das narrativas trabalhadas. Apenas espalha as peças do quebra-cabeça. O jogo entre o casal de intérpretes no início; a escuridão no segundo ato; em seguida, a imagem do garotinho à espera do ônibus; o semi-círculo de atores ao redor do “narrador”, no último ato, todos olhando para as imagens que se sucedem, como se olhassem, desde a beira do rio Guaíba, para um horizonte de possibilidades refeito constantemente.

O fim é utópico, utópico e doloridamente doce.

Não acho que Puzzle C vá cativar a todos. No fim da sessão, ouvi gente dizendo: “Mas ficou só nisso?” “Achei tudo muito parado. É cansativo.” “Os atores não fazem muita coisa.” Acho que são manifestações tão legítimas quanto meu êxtase. A proposta exige algo do público, que nem sempre está disposto ou disponível para tanto. Quanto a mim, fui arrebatada por esse diálogo tão honesto entre a literatura e o teatro; fui arrebatada pela possibilidade de viajar por imagens tão íntimas estando acompanhada por um monte de gente ao redor, cada qual com sua piração individual, como se nos encontrássemos num ritual coletivo. Na verdade, Felipe Hirsch e os atores nos proporcionaram a experiência mesma descrita no conto de Bettega, o Puzzle que nomeia o projeto. Foram ali momentos de intensa partilha. No fim, nos resta apenas despedir de Marta, a dos espelhos, quando a porta do ônibus se fecha e o barulho dos carros se faz mais forte que a voz: “Tu me escreve?”

No elenco, Felipe Rocha, Georgette Faddel, Isabel Teixeira, Luna Martinelli, Magali Biff, Marat Descartes e Rodrigo Bolzan.

PUZZLE. De 7/11 a 22/12. Puzzle a (qui. 21h; duração: 150 min.); Puzzle b (sex. e sáb. 20h; duração: 150 min.); Puzzle c (dom. 18h; duração: 90 min.). Gênero: performance. Classificação: 18 anos. Sesc Pinheiros: Rua Paes Leme, 195, Metrô Faria Lima, tel.: 3095-9400. Ingressos: R$ 4,80 (trabalhador no comércio e de serviço matriculado) a R$ 24. Crédito: D/M/V. Débito: M/R/V. Onde comprar: no Sesc Pinheiros (ter. a sáb. 10h/21h e dom. e fer. 10h/18h), pelo site sesc.org.br e nas demais unidades do Sesc. (E) R$ 6.