O teatro incendiário que vem do Líbano

Um grupo de oito turistas em visita a Damasco, capital da Síria, são subitamente sequestrados pelo serviço secreto do regime de Bashar al-Assad. Levados para alguma prisão clandestina, situada no porão de um edifício qualquer da cidade, passam por momentos de tensão. A atmosfera não é amistosa; a princípio sem entender muito – afinal, os “soldados” conversam entre si em árabe ou inglês –, os turistas aos poucos percebem que estão cercados por uma rede de intrigas alimentada por um governo ditatorial. Poderia até ser mais uma notícia relacionada ao sangrento conflito na Síria, que já matou mais de 100 mil pessoas – segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) – desde 2011, quando começou o levante contra o presidente Assad. Mas trata-se do enredo de 66 Minutos em Damasco, espetáculo do libanês Lucien Bourjeily, que nesta quinta-feira (31/10) abre a 1ª Bienal de Teatro da USP, dedicada às “realidades incendiárias”.

O ator, diretor teatral, cineasta e ativista social Lucien Bourjeily vem mesmo de uma realidade incendiária – Oriente Médio – e aposta numa estética teatral igualmente instigante, uma “improvisação interativa site-specific intensiva de imersão”, como define. Tem posições políticas bastante firmes, e não acredita numa arte “diplomática”, que faça concessões. Para ele, a liberdade de expressão é um direito fundamental do ser humano que não pode ser tolhido por governos, líderes religiosos ou grupos econômicos. Bourjeily afirma que a verdadeira revolução na Síria se deu quando a população venceu a barreira do medo e foi às ruas contra o regime. Recorda o caso emblemático de um grupo de jovens da cidade de Daraa que usou o grafite para criticar o governo de Assad. Foram detidos e torturados. “A cidade inteira pediu a libertação dos garotos. Eles retornaram mutilados e machucados, e isso expôs os métodos do regime.  A comunidade, então, voltou a protestar com mais confiança”, diz o diretor.

Além de diretor e ator, Lucien Bourjeily (de preto) é ativista social e aposta numa estética teatral instigante, que não seja "diplomática" nem faça concessões. (Foto: Elcio Silva/Divulgação)

Além de diretor e ator, Lucien Bourjeily (de preto) é ativista social e aposta numa estética teatral instigante, que não seja “diplomática” nem faça concessões. (Foto: Elcio Silva)

Segundo Bourjeily, o teatro não tem necessariamente um compromisso de tratar de temas políticos, mas, como o artista é sempre inspirado ou afetado por aquilo que está ao redor, acaba expressando inquietudes de seu tempo. “Se você sente que precisa falar de algo porque isso o afeta de algum modo, você deve falar. O importante é não se censurar”, diz. “O teatro tem sua realidade própria, que muitas vezes é mais real que a realidade em si. Afinal, usamos máscaras todo o tempo – e o teatro nos faz tirá-las, desnudando-nos emocionalmente.”

A peça 66 Minutos em Damasco teve sua estreia mundial em Londres, Inglaterra, durante o LIFT Festival, famoso evento internacional de teatro. Serão apenas quatro dias de apresentações durante a Bienal – nesta quinta, 31/10, e de 1 a 3/11, sexta a domingo, sempre no Tusp. O libanês também dará um workshop gratuito nos dias 4, 5 e 6/11. A seguir, trechos da conversa com Lucien Bourjeily, na qual ele falou sobre sua trajetória artística e as razões de ter escolhido um tema espinhoso para abordar.

Trajetória artística

O diretor Lucien Bourjeily conversa com alunos durante workshop realizado de improvisação em teatro no Beirute, Líbano  (Foto: Beirut Acting/Divulgação)

O diretor Lucien Bourjeily conversa com alunos durante workshop de improvisação em Beirute, Líbano. (Foto: Divulgação)

“Pensava inicialmente em ser apenas ator, mas acabei me tornando diretor de um modo natural. A escola onde eu fazia o curso de interpretação ficava fora de Beirute, nas montanhas, e, quando nosso grupo manifestou o desejo de montar uma peça de Chékov na cidade, o diretor não quis nos acompanhar. Como faríamos? O grupo, então, democraticamente me escolheu; assim dirigi minha primeira montagem. Encenamos, depois, outras obras de Chékov e também clássicos franceses, como os textos de Albert Camus, adaptando-os para a realidade local e usando uma linguagem mais coloquial. Passei a oferecer meus workshops de atuação e a trabalhar com a improvisação. Essa técnica sempre me fascinou: o ator entra de tal modo em seu personagem que vai além do texto dado e acaba criando o seu próprio. Deste modo, o intérprete se torna também autor. Quando eu atuava, sempre esperava por esse momento de ‘apropriação’. Não se trata de agir como protagonista ou receber orientações extras sobre o que fazer; mas sim entender tão bem o personagem, estar tão envolvido com ele, a ponto de saber como ele reagiria em qualquer situação. Isso é improvisar.”

O gosto pela improvisação

“Durante um de meus workshops, propus aos alunos que fizéssemos uma apresentação de commedia dell’arte nas ruas. Improvisaríamos de acordo com as características de cada personagem, interagindo com as pessoas. Foi uma experiência totalmente nova em relação ao que eu havia aprendido. Estava acostumado com aquele teatro de grandes plateias, muitos atores no palco, algo bastante tradicional. Nas escolas ou nas universidades não víamos propostas muito diferentes. Por conta da guerra civil, não tínhamos muita conexão com o que estava sendo feito fora; os artistas que iam estudar no exterior não voltavam. Não havia, portanto, tradição de improvisação. Fizemos nossas próprias descobertas. Nossos trabalhos se assemelhavam ao método de Augusto Boal [carioca criador do Teatro do Oprimido], mas não sabíamos. Certa vez, depois de uma apresentação, um espectador veio me procurar e perguntou se eu conhecia Boal. Disse: o que vocês fazem é similar. Fui atrás de informação e, de fato, encontrei várias semelhanças: criar uma cena que pudesse ser interferida, reposicionar os personagens, trabalhar a questão do opressor e do oprimido… Aos poucos, conheci outras pesquisas e iniciativas; fiquei muito feliz com isso. Aprendi muito.”

A criação de uma estética

“O teatro tem sido, para mim, uma verdadeira jornada: comecei fazendo os clássicos e depois passei às adaptações; em seguida, depois para a improvisação, da improvisação à interação com o público e, depois, às criações site-specific. Com o grupo, decidimos não fazer mais espetáculos num teatro, mas sim onde devem acontecer; se é numa casa, vamos a uma casa. Se é numa estação de trem, vamos a uma estação de trem. E, então, depois das criações site-specific, demos mais um passo: a imersão. Por isso, 66 Minutos representou uma ruptura, um salto: porque se baseia numa improvisação interativa site-specific intensiva, ou seja, uma verdadeira imersão teatral. As pessoas do público se tornam os heróis da peça: vivem a história do ponto de vista dos protagonistas. Obviamente há os antagonistas, aqueles que criam obstáculos. Queremos, com esse espetáculo, que o público se coloque no lugar das pessoas que desaparecem em contextos de ditadura e de regimes em que se abusa do poder – como se passou também no Brasil. Cidadãos são sumariamente sequestrados, torturados e ninguém fica sabendo mais nada sobre eles. Nunca estivemos onde eles estiveram; nessa peça, oferecemos ao público a oportunidade de passar por uma experiência parecida, de criar empatia com esses desaparecidos. Conversamos com refugiados no Líbano e em Londres, gente que conseguiu escapar ou que foi liberada depois de algum tempo numa dessas prisões. O consultor artístico do espetáculo é um deles.”

A peça "66 Minutos em Damasco" faz com que o público vivencie o drama dos desaparecidos políticos, que são mantidos numa prisão clandestina, controlada por membros de um regime ditatorial. (Foto: Elcio Silva/Divulgação)

A peça “66 Minutos em Damasco” faz com que o público vivencie o drama dos desaparecidos políticos, que são mantidos numa prisão clandestina, controlada por membros de um regime ditatorial. (Foto: Elcio Silva.)

Por que falar dos desaparecidos

“A Guerra Civil do Líbano (1975-1990) deixou milhares de desaparecidos. No centro de Beirute, até hoje, há pequenas tendas com fotos de muitas desses pessoas. Ninguém sabe o que aconteceu com elas. Agora há um número grande de sírios na mesma situação. Muitos se esquecem que, antes de Bashar al-Assad, seu pai [Hafez al-Assad] governou o país durante décadas. O regime ditatorial sírio foi uma das grandes peças da guerra civil libanesa, alimentava os dois lados do conflito. Meses atrás, uma bomba explodiu em Trípoli e matou mais de 40 pessoas. A ideia era responsabilizar o Hezbollah e criar tensão com os sunitas; mas as investigações revelaram que a bomba foi obra do serviço de inteligência do regime sírio. A mesma coisa que havia ocorrido em Líbano vem acontecendo na Síria: o governo mantém a sociedade dividida para que o regime despótico seja considerado como a única solução possível. E persegue aqueles que se opõe. Sequestram essas pessoas e as submetem a sessões de tortura física e psicológica; poucos conseguem escapar. Assim, o regime controla a sociedade, instaurando o medo.”

O teatro hoje

“Se quiser sobreviver, o teatro não deve imitar o cinema, mas sim buscar o que existe na experiência teatral que não pode ser vivenciado em outro lugar. A função inicial do teatro, de contar histórias a fim de entreter as plateias, foi absorvida pelo cinema – por que, então, ainda insistir nessa linguagem? O teatro pode e deve ser sempre interativo: o público sempre reage instantaneamente ao que ocorre no palco.”

66 Minutos em Damasco. De 31/10 , qui. 14h, 15h, 16h, 17h e 18h; 1 a 3/11, sex. a dom. 14h, 15h, 16h, 17h, 18h e 19h. Gênero: Imersão. Duração: 66 min. Classificação: 18 anos. Idiomas: inglês e árabe. Público: 8 pessoas por sessão. TUSP: Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, tel. 3123-5241. Mais informações: usp.br/bienaldeteatro