Os íngremes caminhos da arte

Perguntássemos à Menina o que de fato morreu – se o teatro? a arte pela arte? o refinamento das criações? os mecenas? – e ouviríamos dela uma incômoda resposta, precedida por uma sonora risada. Acharíamos sua atitude insolente, ou talvez petulante, rancorosa talvez; é possível que a acusássemos de decadente, ultrapassada ou ingênua. Ingênua a Menina? Não, ingênua certamente não, teriam dito os meninos, se não houvessem partido, um depois do outro. Ah, os meninos… Sabem como é, o mercado. O borderô. O subsucesso – uma oportunidade volátil de alcançar alguns minutos de fama. Bem, Menina, o teatro está morto? A arte morreu? O capitalismo matou a utopia, a fantasia, o ato criativo? Antes, aquela risada. A risada – um quê de melancolia, um quê de despeito. Ha-ha-ha. Morreram as plateias, ela diria, pronunciando com sonoridade as sílabas, os encontros consonantais, os encontros vocálicos: mor-re-ram-as-pla-tei-as. O público morreu! Morreu. A Menina cruza as pernas no banquinho; uma digressão: outrora, havia um encontro – éramos nós e o público. O público e nós. Havia quem nos viesse ver, mas não só isso: os espectadores, na verdade, eram mais que espectadores. Outrora estavam dispostos ao ritual, à comunhão, ao diálogo. Era isso: havia diálogo. Di-á-lo-go (a Menina gosta de hiatos, pronuncia as vocais solitárias no meio das palavras, ela mesma se sente solitária em meio a tantas outras letras). Hoje – a Menina quase soluça; calma, calma, Menina, ah, se os meninos estivessem ainda por aqui, se não houvessem ido um a um atrás das tentações efêmeras… –, hoje, as plateias estão mortas.

Cessa a música.
Há um silêncio sepulcral. Mas as luzes estão todas acesas.
Depois… depois o abismo.

Silvio Restiffe faz um dos assistentes da cantora em "Music Hall", com texto de Lagarce e direção de Luiz Päetow. (Foto: Cacá Bernardes / Divulgação)

Silvio Restiffe faz um dos assistentes da cantora em “Music Hall”, com texto de Lagarce e direção de Luiz Päetow. (Foto: Cacá Bernardes / Divulgação)

O início da montagem Music Hall, baseada no texto do francês Jean-Luc Lagarce (1957-1995) belamente traduzido pelo diretor e – surpreendente – ator Luiz Päetow, joga o público no palco. Em seguida, no vazio. Os espectadores têm toda a liberdade de serem os espectadores que habitualmente são: alguns seguram a respiração, mal se movem nas cadeiras, totalmente alertas; outros, aborrecidos, retomam a troca de mensagens no celular [merda, aqui o sinal da internet é bem ruim…]; outros ainda, remexem na bolsa em busca de uma balinha, reviram as chaves, o saquinho plástico, os papéis, ah, que fazem esses papéis aqui na minha bolsa, mas ninguém se importará com esse ruidinho, não é? A peça nem começou… Alguém espirra, outro imediatamente tosse, um homem e uma mulher em cantos distintos suspiram profunda e longamente. Puxa. Nada vai acontecer?, pensa o senhor da terceira fileira. [A mulher da primeira fila está em êxtase. Cada qual com sua catarse…] Ora, espectadores, aproveitem esse momento de cena totalmente de vocês. Logo mais, a Menina estará no palco e o comando do show mudará de lado.

Music Hall não é um espetáculo fácil. Refinado e inteligente, exige certo compromisso do público, que fica na berlinda durante todo o tempo, bastante incomodado. A Menina rememora seus tempos de ‘music hall’, ou seja, quando protagonizava espetáculos de entretenimento com números musicais e passagens cômicas, acompanhada por seus dois assistentes de palco. A peça transita por tempos distintos – em que vários ‘passados’ se misturam e o presente é posto em xeque – e também por diferentes planos: o da memória, o do fluxo de consciência, o do solilóquio, o do diálogo (imaginário ou real?). Centrado basicamente no discurso e menos na ação, o texto de Jean-Luc Lagarce tem uma sintaxe própria, peculiar, vai e volta nos argumentos. Existe até uma figura de linguagem (para ser mais precisa, de pensamento) que explica esse vaivém: epanortose ou correção, recurso estilístico de retorno à frase e aos termos anteriores para corrigi-los, com o intuito de ressaltá-los ou modificá-los.

A opção de Päetow foi dar um caráter polifônico ao texto, repartindo o personagem da Menina em três intérpretes diferentes: as ótimas Gilda Nomacce e Gabriela Flores, e ele mesmo – surpreendente, como já escrevi. Como não há ações denotativas, a atuação se apóia em “posturas cênicas” e pequenos, mas contundentes, movimentos. Seriam facetas ou fases da Menina? Ou ainda, personas? A montagem deixa em aberto. É sempre a mesma Menina, sendo, no entanto, muitas Meninas – cada qual com seu pocket show, com seu foco de luz, com sua cadência peculiar e seu estado de espírito. É impressionante notar as sutilezas de interpretação de Gilda e Gabriela, da voz ao movimento das mãos, tão diversas e tão complementares. Deste modo, com a alternância, conhecemos a Menina em seu romantismo melancólico (Gabriela); na maturidade, cheia de escárnio recalcado (Gilda), e em sua agonia salvífica, como num processo de autobeatificação (Luiz).

Os meninos, interpretados pelos competentes Donizeti Mazonas e Silvio Restiffe, muito bons, exibem uma fragilidade pueril, um sarcasmo ingênuo, uma pseudo-independência. Afinal, simulam desapego em relação àquela situação toda, às exigências da Menina, aos percalços da profissão, à insignificância daquele espetáculo cada vez mais esvaziado, embora se saibam devedores daquela “arte”. Ou daquele “sistema”. Seus movimentos repetitivos, que mal os levam a lugar algum, são reveladores.

Mas a grande beleza desse espetáculo difícil e intransigente está no depurado trabalho de dicção dos atores, que reproduz a sintaxe peculiar de Lagarce. Há uma tentativa de comunhão entre forma e conteúdo, entre a linguagem dramatúrgica e a linguagem cênica. As relutâncias, o vaivém, as quebras, as dissonâncias, os parênteses e colchetes – tudo aparece na voz, nas vozes. Há um jogo constante de sonoridades, como se a fala se confundisse com o canto a todo momento. Ou como se o canto tivesse deixado rastros na fala. Existe uma incompletude presente, latente, na narrativa. Ao mesmo tempo, impera uma volatilidade; como se as palavras se dissolvessem tão logo estivessem em contato com os ouvintes.

O desenho de luz é um capítulo à parte: rendeu a Päetow o Prêmio Shell de Melhor Iluminação 2009, ano em que o espetáculo estreou. Totalmente integrada à encenação, a luz narra, pontua, conta histórias. E sim: é o próprio Päetow quem a opera, ali mesmo, diante de todos, enquanto a Menina agarra-se às próprias fagulhas e faíscas que lhe restam. Não há virtuosismo, mas muita, muita sensibilidade. Bem, eu fiquei encantada.

Impossível não notar a entrega visceral dos atores a esse projeto – especialmente de Luiz Päetow. Pode-se decretar o fim da História, o fim do teatro, o fim da própria humanidade; a decrepitude dos artistas, o esvaziamento da arte, o enterro do amor. Talvez o que esteja morrendo, contudo, seja mesmo a plateia tal e qual ainda a definimos, aquela plateia submissa e conivente, acomodada. Essa plateia sucumbe ao esgotamento, ao enfado ou à dispersão, prefere a grande televisão de plasma no canto da parede e a diversão das redes sociais no celular. Acostumou-se ao sossego dentro de suas muralhas cercadas, à assepsia nas relações, à vida despolitizada, desapimentada (perdoem o neologismo) e deveras orientada. Ora, essa plateia não vai mais ao teatro.

Abismo – o artista fica atônito. Chora, não compreende. Acostumado que estava a certos conceitos, o que fazer agora?
Apagam-se as luzes. O silêncio é sepulcral.

Mas novas plateias sempre surgem, sedentas e famintas, curiosas e abertas, à espera de artistas que acreditam no que fazem. Afinal, para que haja comunhão, é preciso que os dois lados estejam presentes no ritual. Enquanto houver entrega e fé, como demonstram Päetow e os intérpretes da Cia. da Mentira, meninas e meninos continuarão com seus espetáculos, deste e daquele lado – mesmo que os caminhos sejam íngremes, deveras íngremes.

A excelente Gilda Nomacce em um dos momentos da Menina: a relação sempre ambivalente do artista com a plateia. (Foto: Cacá Bernardes / Divulgação)

A excelente Gilda Nomacce em um dos momentos da Menina: a relação sempre ambivalente do artista com a plateia. (Foto: Cacá Bernardes / Divulgação)

Até 20/10, sex. e sáb. 21h, dom. 20h. Gênero: drama. Duração: 70 min. Classificação: 14 anos. CIT ECUM: R. da Consolação, 1623, Metrô Paulista, tel. 3255-5922. Ingressos: R$ 40. Crédito: Diners, Mastercard e Visa. Débito: Maestro, Redeshop e Visa Electron. Onde comprar: na bilheteria (abre duas horas antes) ou, com taxa, pelo site compreingressos.com.