Uma morte repleta de vida

Na iminência da morte, presa a uma cama de hospital, Aparecida despede-se aos poucos de suas lembranças. Outrora uma grande trapezista circense, amante das viagens e dos riscos, hoje precisa aceitar as limitações que seu frágil corpo de 94 anos lhe impõe. Aparecida conta com a companhia de Renata, mulher solitária, de vida organizada e rotineira, que conta histórias aos pacientes do hospital. Renata vive com seu cão Sig e mantém – por meio da troca de cartões postais –um tênue contato com a mãe, que a abandonou na adolescência e hoje vive em Bali.

A amizade e as surpreendentes revelações que surgem do encontro entre essas duas mulheres conduzem a narrativa do espetáculo Memória Roubada, que reúne o australiano Mark Bromilow, que foi diretor artístico do Cirque du Soleil entre 2008 e 2010, e os atores das companhias Linhas Aéreas (Bel Mucci, Natalia Presser e Ziza Brisola) e Solas de Vento (Bruno Rudolf e Ricardo Rodrigues). A ideia da peça surgiu em 2011. Bromilow, que já havia visitado o Brasil várias vezes e conhecia vários profissionais do meio artístico, sugeriu uma parceria aos intérpretes daquelas companhias. As reflexões advindas com a morte de sua mãe foram o ponto de partida para a construção da dramaturgia. Enquanto ela esteve internada, Bromilow permaneceu a seu lado. Observou como todos ali se ocupavam do corpo, do bem-estar físico de sua mãe, enquanto ela mesma parecia estar voltada tão-somente para o espírito. Pairava sobre eles a sensação de que a partida era inevitável.

O espetáculo "Memória Roubada" reúne integrantes das companhias Linhas Aéreas e Solas de Vento sob direção do australiano Mark Bromilow, que foi do Cirque du Soleil (Foto: Paulo Barbuto / Divulgação)

O espetáculo reúne integrantes das companhias Linhas Aéreas e Solas de Vento sob direção do australiano Mark Bromilow e mistura recursos diversos. (Foto: Paulo Barbuto)

O australiano decidiu, então, criar uma história que unisse os conceitos de Earth (Terra) – myth(mito) – sky (céu), não necessariamente no sentido religioso, mas em especial no tocante aos planos físico e espiritual. No hospital, ele costumava ler histórias para a mãe, como ela fazia quando ele era criança. Com base nessas premissas, em cinco meses de experimentações, os atores e o diretor desenvolveram juntos os pilares tanto da dramaturgia quanto da encenação. O texto não deveria se sobrepor à forma e as linguagens escolhidas tampouco poderiam ser gratuitas ou meros exercícios de virtuosismo; precisariam estar a serviço da narrativa.

Memória Roubada combina, então, recursos de teatro físico, animação, técnicas circenses e recursos multimídia. Elementos da cultura balinesa, como o teatro de sombras, o uso de máscaras de madeira – que representam personagens cômicos – e a manipulação de bambus, também estão presentes. O espetáculo joga com o tempo e a alternância entre passado e presente, com o sentido de viagem – pode ser tanto uma travessia mítica quanto uma jornada concreta, do Brasil a Bali, por exemplo – e com a contraposição realidade versus imaginação. E confere humor e leveza a uma história dramática. Temas como o autoconhecimento, a reconciliação com o próprio passado e passagens ligadas ao período da ditadura militar brasileira igualmente fazem parte da narrativa.

A relação entre Aparecida (um boneco manipulado pelo ator Bruno Rudolf) e Renata (interpretada pela atriz Ziza Brisola) reconstitui a memória roubada pelo tempo e pela História. A equipe conta, ainda, com a colaboração de dois parceiros internacionais de Mark Bromilow – o compositor e sound designer Michel Robidoux e Yves Dubé, designer de vídeo, ambos integrantes da premiada companhia canadense de teatro Les Deux Mondes.

De 11/10 a 3/11, sex. e sáb. 21h, dom. 20h. (não haverá espetáculo dia 1º/11). Gênero: Performance. Duração: 90 min. Classificação: 16 anos. , Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho: Rua Vergueiro, 1000, Metrô Vergueiro, tel. 3397-4002. Ingresso: R$ 20. Crédito: não aceita. Onde comprar: na bilheteria, que abre duas horas antes.