Uma piscina em cena

Patrícia Selonk e Ricardo Martins em cena de A Marca D’Água (Foto: Divulgação)

Depois de ter assistido à peça A Marca da Água, da Armazém Companhia de Teatro, a música de Arnaldo Antunes, na voz de Maria Bethânia, não me deixou em paz: “Debaixo d’água tudo era mais bonito,/mais azul, mais colorido/só faltava respirar./Mas tinha que respirar./ Debaixo d’água se formando como um feto,/ sereno, confortável, amado, completo,/sem chão, sem teto, sem contato com o ar. Mas tinha que respirar,/ todo dia,/ todo dia.” Laura, a protagonista, leva uma vida rotineira ao lado do marido e do filho. Vez ou outra, tem fortes dores de cabeça e não passa um dia sem escutar uma bela música que parece sair de sua própria cabeça. Quando encontra um peixe grande em seu jardim, porém, tem a sensação de que vai se afogar. Como assim? O que significa aquele peixe ali, às vistas de seu marido? O mundo interior (o debaixo d’água) estaria inundando o mundo exterior (a realidade cotidiana, concreta e “seca”)? Debaixo d’água tudo era mais bonito, porém ela tinha que respirar. Todo dia, todo dia.

Na infância, Laura sofreu um grave acidente que a deixou com sequelas neurológicas. Isso explica tanto as dores de cabeça quanto a insistente música que ressoa dentro dela. Seu cérebro corre risco de alagamento: gradativamente, o nível interno de água vai aumentando – fato cientificamente provado. Suas memórias parecem, com frequência, sair do lugar, como se boiassem. Quanto mais profundas são as águas remexidas pelos metafóricos mergulhos de Laura, mais remotas e imaginárias se tornam suas lembranças. Momentos distintos de sua existência se embaralham: as peripécias da menina ao lado dos pais e do irmão e, já adulta, a convivência com o marido. Navegar é preciso, Laura, viver não é preciso, ensinou o poeta.

Patrícia Selonk como Laura: memórias que sofrem alagamento (Foto: Divulgação)

E como transpor para os palcos uma história tão onírica quanto fragmentada? A experiente Armazém Companhia de Teatro, criada há 25 anos em Londrina (PR) e desde 1998 radicada no Rio de Janeiro, encarou com prazer tal desafio. Os dramaturgos Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, também diretor, apostaram numa narrativa descontínua mas fluida, na qual a transição entre os diversos eventos (mesmo fora de ordem) se torna bastante coerente. Muitas das falas ou reflexões de Laura carregam tanta poesia que, em vários momentos, pensei: eu também me sinto assim. Os atores assumem seus personagens com desenvoltura e verdade – Patrícia Selonk faz Laura; Ricardo Martins, o pai e o médico; Marcos Martins, o marido; Marcelo Guerra, o irmão; e Lisa Fávero, a mãe. A gente sente que eles estão, de fato, em cena, vivos, pulsantes, mesmo quando não participam diretamente da ação central. Patrícia passa da Laura adulta à Laura menina com sutileza, pequenas inflexões de voz e mudanças discretas na postura. O cenário é simples e versátil: uma piscina, uma parede e a brincadeira com os reflexos e as projeções bastam para contextualizar a história. Outros elementos atiçam a fantasia: balões, barquinhos, vara de pescar, um escafandrista… O músico Ricco Viana também se encontra presente, todo o tempo. E, se tenho uma ressalva quanto à montagem, ela diz respeito à onipresença da música. Algumas passagens pediam um pouco mais silêncio. A peça, que estreou primeiro no Rio de Janeiro, veio de lá com três indicações ao Prêmio Shell (atriz, autor e cenário).

As fronteiras entre realidade e memória são tênues. O simbolismo da água preenche a sonhação de Laura. Ela quer registrar a música que escuta dentro de sua cabeça; almeja dar-lhe concretude e um sentido que sobreviva a ela mesma, como um testemunho. Volto à canção de Arnaldo Antunes: “Debaixo d’água protegido, salvo, fora de perigo,/aliviado sem perdão e sem pecado,/sem fome sem frio sem medo/ sem vontade de voltar”. Um dia, durante um mergulho, Laura não terá mais que subir para respirar.

Os truques da memória conduzem a montagem de A Marca d’Água, do Grupo Armazém Cia de Teatro (Foto: Mauro Kury / Divulgação)

A MARCA DA ÁGUA.  Até 24/3, sex. e sáb. 21h; dom. 18h. Sesc Santana: Av. Luiz Dumont Villares, 579, Jardim São Paulo, tel.: 2971-8700. Gênero: drama. Duração: 70 min. Classificação: 12 anos. Ingressos: R$ 6 (trabalhadores de serviço ou no comércio matriculados) a R$ 24. Crédito: American Express/Diners/Mastercard/Visa. Débito: Mastercard Maestro/Redeshop/ Visa Electron. Onde comprar: na bilheteria do Sesc Santana (ter. a sáb. 10h/21h; dom. 10h/19h) e nas demais unidades do Sesc. Estacionamento: R$ 7.