Peço licença aos leitores para me dedicar hoje a digressões muito minhas em vez de comentar alguma peça específica. Peço também licença por voltar a mencionar Ficção, o projeto de seis solos da Cia. Hiato, que já foi assunto de um post recente e, para mim, se constitui uma proposta super interessante em relação ao fazer teatral e, sobretudo, ao trabalho do ator. No fim de semana, fui assistir ao solo de Maria Amélia, que havia perdido em 2012, e rever um dos meus favoritos, a performance de Thiago Amaral/Amoral. Levei comigo alguns amigos. Ao final, um deles, o Bruno, matemático e professor universitário, me agradeceu pela indicação: “Fazia tempo que não me emocionava tanto no teatro”.
Há alguns dias, li o texto do ator Renato Borghi comentando a crítica da peça O Casamento, baseada no romance homônimo de Nelson Rodrigues, na qual atua. Não vi o espetáculo, então não posso nem quero opinar nada, mas achei a reflexão do Borghi bastante pertinente, especialmente porque transcende a montagem em questão e lança luzes sobre um tema mais amplo, a contribuição dos intérpretes para uma obra teatral. Ele diz: “O teatro é o reino dos atores. E não somos generalidades, conjuntos de peixinhos de aquário. Cada ator é único.”
Ficção deixa isso muito claro. Não sei exatamente como foi o processo criativo ou como se deu a construção dramatúrgica dos monólogos, mas imagino que Léo Moreira (o diretor) tenha sido bastante generoso com os atores ao permitir que eles assumissem as rédeas e os riscos de seus solos. A impressão é que Léo os guiou sem, no entanto, podar possibilidades ou corrigir imperfeições; deixou que os intérpretes assumissem suas próprias escolhas (narrativas, técnicas e cênicas). Em conversa com o amigo e experiente ator Edmilson Cordeiro, do Grupo Redimunho, falávamos justamente sobre como essa proposta da Cia. Hiato desnuda inteiramente o artista e põe em evidência sua potência criativa, sua presença cênica, seu rigor técnico, sua leveza e principalmente sua entrega. No palco, o ator-criador se assume tanto protagonista de sua própria história quanto personagem de si mesmo.
>> Entrega & presença, alma & técnica
O solo da Maria Amélia é muito poético. Achei-o menos cênico que o de Thiago, que explorou melhor os recursos teatrais, mas foi tão bem executado quanto. A beleza do monólogo de Maria Amélia está na condução da narrativa, na trança entre ficção e realidade – sutilmente misturadas –, nas pequenas pistas que ela joga lá e cá que tanto elucidam quanto confundem (de quem é a história, afinal?). As emoções que demonstra não são vazias nem em vão (isso também ocorre com Thiago e Luciana Paes). Ela não se atém a um desenho de si mesma, pelo contrário: investiga esse “si mesma”. Quanto ao Thiago, sua performance é irretocável; foi fundo em questões tão íntimas e tirou dali um espetáculo teatral redondo, bem-humorado sem deixar de ser profundo. Não havia nada gratuito. E a cena de Cachorro Morto, revivida ao lado do pai, Dílson Amaral, tem sempre um impacto impressionante.
Nos monólogos de que gostei menos, embora interessantes como parte do todo, apareceram certas fragilidades das quais nenhum ator está livre. Na minha opinião, faltou rigor à Aline Filócomo, uma consciência maior sobre seus gestos, seus deslocamentos, sua presença em cena. As intenções se dissolveram numa narrativa que precisava de decupagem. No caso de Fernanda Stefanski, fiquei com a impressão de que seu mergulho foi apenas parcial; ela ousou pouco, como se sentisse receio em se apropriar de sua história e, consequentemente, revelar demais (quem a viu em O Jardim sabe de sua potencialidade). E o solo de Paula Picarelli, que lidava de um modo instigante com a questão da auto-imagem, careceu de jogo de cena mesmo, de que a atriz e a personagem (ela mesma) se impusessem mais.
Um dos amigos que me acompanhou no Cit-Ecum para ver Ficção comentou: “Fazer bom teatro não é fácil”. Não mesmo. Ser um bom ator de teatro também não – especialmente em tempos de banalização do ofício, de interpretações superficiais e preguiçosas, de atores sem repertório e com pouca técnica [ou com pura técnica e pouca alma], de corpos de aparência impecável mas cenicamente mortos e nada narrativos, de um certo histerismo etc. Parte da responsabilidade por essa visão de “elenco = cardume”, mencionada por Borghi, vem dos próprios artistas, que se contentam com o simulacro. Por isso, Ficção me pareceu um exercício tão saudável. Imaginem se todos os intérpretes atualmente em cartaz, nos incontáveis espetáculos apresentados em São Paulo, tivessem de criar solos assim?
[As digressões continuam no post seguinte.]