Festa à la Manoel de Barros

Os atores Rodrigo Léllis, Camila Márdila, Miwa Yanagizawa, Liliane Rovaris e Lafayette Galvão em cena de "nada, uma peça para Manoel de Barros". (Foto: Ismael Monticelli)

Os atores Rodrigo Léllis, Camila Márdila, Miwa Yanagizawa, Liliane Rovaris e Lafayette Galvão em cena de “nada, uma peça para Manoel de Barros”. (Foto: Ismael Monticelli)

Convidado a escrever suas memórias, o poeta sul-matogrossense Manoel de Barros (1916) respondeu que “só tinha memória infantil”. Acabou preparando, então, três volumes autobiográficos, entitulados Memórias Inventadas e dedicados às suas três infâncias: a meninice, a mocidade e a velhice. Os volumes vêm numa caixinha e, em suas folhas amareladas, trazem poemas em prosa emoldurados por “iluminuras” criadas pela pintora Martha de Barros, filha do poeta. “Tudo o que não invento é falso”, escreve Manoel de Barros. Num dos poemas da Segunda Infância, chamado “Oficina”, o poeta narra um empreendimento com aquele amigo seu de “olhar descomparado”: uma Oficina de Desregular a Natureza. O primeiro trabalho foi um Besouro de Olhar Ajoelhado. Depois vieram o Lírio Pensativo de Deus e Uma ideia de roupa rasgada de bundaO alicate cremosoA fivela de prender silêncios

A fivela de prender silêncios. Ao voltar da festa de aniversário do avô Joaquim, fui correndo remexer nas minhas caixinhas de Memórias Inventadas do – e pelo – poeta, porque o avô Joaquim tinha falado em “fivela de prender silêncios”. Isso se deu lá pelas tantas, num momento em que a jovem Teresa relembrava momentos da infância e tentava conter o incômodo e o constrangimento causados pela chegada súbita de sua prima Ana, que deixara a casa sete anos antes e agora retornava sem avisar, vestida de noiva. Foi um momento bonito porque Maria, ainda atônita com o aparecimento repentino da filha, também entrou na brincadeira de relembrar essas coisas que existem, mas a gente não vê, ainda mais em dias de chuvarada de tornar o mundo invisível. Lourival, marido de Maria, e Dadá, tia de Ana e Teresa, também participaram. Foi um momento de comunhão, daqueles saudados por Manoel de Barros: o menino e os bichinhos, o menino e o rio, o menino e as árvores… Ali, era a família, o afeto e umas quantas memórias ainda doces e cheirosas.

Inspirado pelo universo do poeta sul-matogrossense, o espetáculo concebido pelos irmãos goianos Adriano e Fernando Guimarães, com colaboração de Emanuel Aragão na dramaturgia e de Miwa Yanagizawa na direção, fala das miudezas cotidianas e dos fragmentos de poesia grudados na memória. Nada de mais, portanto. Não à toa se chama nada, uma peça para Manoel de Barros. O avô Joaquim (Lafayette Galvão) completa 80 anos. Sua filha Maria (Miwa) lhe preparou uma festa, para a qual fomos – 40 sortudos espectadores – convidados. Teresa (Camila Márdila), a sobrinha, a ajuda com as arrumações. Dadá (Liliane Rovaris) nos faz sala, enquanto Lourival (Otto Jr.), o genro de Joaquim, vê se está tudo em ordem. Estamos num daquelas salas de casa de fazenda, sentados ao redor da mesa com os quitutes.

Sobre o que é a montagem? Cotidianidades, memórias, o conversê habitual das celebrações de aniversário nas cidadezinhas do interior brasileiro. Mesa farta, alguma cantoria, um ou outro conflito que naturalmente aparece. O espetáculo [felizmente] não explica Manoel de Barros nem encena sua poesia. Sua única pretensão é nos reunir ali e fazer com que nos sintamos bem. Os versos manoelinos aparecem naturalmente nos diálogos entre os personagens. Acatamos a entrada sem grandes explicações de Ana (Lúcia Bronstein), sua presença marcante, embora silenciosa, e os torvelinhos que provoca no ambiente.

Gosto dessa interpretação que usa o registro da informalidade, mas é consciente, lapidada e precisa. Os atores, embora coloquiais e abertos à improvisação (já que há interação com o público), não se perdem de seus personagens nem os abandonam. Todos eles estão presentes em cena durante todo o tempo: os gestos, as falas, a postura, o estado em que se encontram, os cacoetes próprios de cada figura. Não há artificialidade na atuação nem fingimento (riscos típicos dessa opção). Seus personagens são críveis e têm estofo. Fiquei particularmente encantada com a interpretação de Liliane Rovaris. E Lúcia Bronstein preenche sua personagem de mistério e carisma mesmo com poucos gestos e falas, às vezes com sua respiração, em outras passagens com seu olhar. Tive a oportunidade de sentar ao lado de Lafayette Galvão e ele também tira proveito do mínimo (um fechar de olhos, um menear de cabeça) para revelar quem é esse Joaquim. Além do comprometimento dos intérpretes e de seu talento, percebemos que há uma direção delicada e bastante cuidadosa.

Como em toda boa festa de fazenda, somos convidados a partilhar da fartura posta à mesa. Pães de queijo, bolos, pés de moleque, bala de goma, cachaça e sucos. Enquanto comemos, a festa e a peça continuam. Daí a proeza dos atores em não deixar escapar o fio da meada (nem seus próprios personagens). Há também pausas para uma oração e para cantarmos “parabéns a você” ao avô Joaquim. Tudo muito singelo, fluido, bastante cotidiano. Se tenho algum apontamento a fazer, seria em relação ao final proposto; achei o desfecho um tanto disperso e frouxo. Não que eu defenda uma apoteose qualquer, longe disso. Mas a saída dos atores me pareceu um tanto injustificada naquele momento; não me convenceu muito (exceção feita ao Joaquim de Lafayette Galvão e à Dadá de Liliane Rovaris). Devo dizer, contudo, que o cafezinho com os biscoitos da sorte foram bem-vindos.

Que bonito esse espetáculo; lida com nossos afetos, nossa sensibilidade e nossos sentidos. Não se pretende nada além do que é: um encontro para celebrar a existência, com suas miudezas, sujeirinhas e caprichos. Um encontro com cheiros e sabores, memórias e surpresas. A peça não se sustenta na bilheteria; são apenas 40 espectadores por sessão e há toda aquela comilança. Mas se realiza graças à aposta de instituições, como o Sesc São Paulo, que acreditam em algo além do lucro e do mero entretenimento.

Manoel de Barros me segredou, no bilhetinho que encontrei dentro do biscoito: “Às vezes passo por desfolhamentos”. Eu também, poeta. Enquanto vivemos essa primavera invernal aqui em São Paulo, estou às voltas com meu outono particular, trocando as folhas todas. E fico me lembrando daquilo que falou o avô Joaquim, que por sua vez repetiu uma dessas deliciosas invencionices manoelinas: num momento desses, menina, quer coisa mais útil que uma fivela de prender silêncios?

PS.: Combina bem com a atmosfera da peça a “desbiografia oficial” do poeta Manoel de Barros feita, sob a forma de filme, pelo diretor Pedro Cezar. Chama-se Só Dez Por Cento é Mentira.

PS. 2: No dia em que fui assistir ao espetáculo, o ator Rodrigo Lélis que interpreta Cícero não estava presente.

A atriz Liliane Rovaris ao lado das peças de vidro que compõem a instalação "Rumor", criada pelo Coletivo Irmãos Guimarães e que também integra o cenário do espetáculo "nada". (Foto: Ismael Monticelli)

A atriz Liliane Rovaris ao lado das peças de vidro que compõem a instalação “Rumor”, criada pelo Coletivo Irmãos Guimarães e que também integra o cenário do espetáculo “nada”. (Foto: Ismael Monticelli)

(O espetáculo ficou em cartaz no Sesc Belenzinho de 5/9 a 6/10.)